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Laços de Sobrevivência

O que leva uma criança a ser retirada de sua família?

Por Beatriz Figueiredo

A Campanha do Laço Azul conscientiza sobre a prevenção da violência infantil e simboliza o combate aos abusos e à negligência. O azul lembra as marcas visíveis deixadas nas vítimas, sendo um lembrete do que maus-tratos podem causar.

Um porão escuro e empoeirado, onde a única luz vem de uma pequena luminária encostada no canto esquerdo da parede. O silêncio é quebrado apenas pela respiração rápida e entrecortada de duas pequenas figuras encolhidas, perto de um colchão velho e mofado jogado no chão. A porta se abre, revelando a silhueta de uma figura maior, que coloca um prato com pão de forma no chão, antes de trancar a porta novamente, sem dizer uma palavra.

Com os braços trêmulos, marcados por hematomas e queimaduras de cigarro, Maria Clara*, de apenas 7 anos, leva a escassa refeição a seus irmãos. Com um gesto cuidadoso, ela divide o pão igualmente entre eles e observa em silêncio, enquanto João Vitor*, de 5 anos, e Marcella*, de apenas 2, comem timidamente. Cada mordida carregada de medo.

Milhares de histórias como essa acontecem todos os dias.

A violência contra crianças e adolescentes é um problema que, embora muitas vezes permaneça invisível, acontece em todas as regiões e classes sociais. Está presente em lares, escolas e comunidades, deixando marcas profundas que vão além do físico e comprometem o desenvolvimento emocional e social das vítimas.

Casos de negligência e abandono, em especial, revelam uma realidade dura: a de que nem sempre os espaços que deveriam garantir cuidado e segurança cumprem esse papel.

O cenário é alarmante em todo o país, como mostram dados divulgados pela Unicef, Atlas de Violência e pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania:

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, 81% dos casos de violência contra crianças e adolescentes no Brasil ocorrem dentro de casa, muitas vezes cometidos por familiares próximos. Especialistas alertam que essa realidade torna o problema ainda mais grave, pois o ambiente que deveria ser sinônimo de proteção e afeto se transforma no local onde essas vítimas enfrentam agressões físicas, psicológicas e abusos. Essa dinâmica dificulta a denúncia, já que a criança, na maioria das vezes, depende diretamente de seus agressores.

A dimensão dessa crise é reforçada pela Sociedade Brasileira de Pediatria, que aponta a notificação de quase 200 casos de violência contra crianças e adolescentes todos os dias no país. Entretanto, acredita-se que o número real seja muito maior, devido à subnotificação e ao medo de denunciar. Para organizações de defesa da infância, esses indicadores configuram uma emergência social e de saúde pública que exige políticas permanentes de prevenção, proteção e acolhimento.

Em São Paulo, dados do Portal SP 156, apontam que em 2022 foram registradas 103 denúncias de negligência e abandono de criança ou adolescente, enquanto em 2023, até outubro, já haviam sido reportados 109 casos. Já na carta de serviço “Denunciar violência e maus-tratos de criança ou adolescente”, foram registradas 226 denúncias, em 2022, e em 2023, até outubro, já se contabilizavam 153 caso.

Mensalmente, 262 casos de abandono e negligência

No Brasil, em 2023, aproximadamente 30 mil crianças e adolescentes viviam em serviços de acolhimento, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça.

8%
Tinham até 6 anos de idade
92%
Maior de 6 anos

A história dessas crianças é apenas uma entre milhares que ocorrem anualmente em nosso país. Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garantir o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade, muitos são submetidos a maus-tratos, abandonados e negligenciados, sendo forçados a envelhecer e aprender a amadurecer, antes mesmo de saírem da primeira infância.

De acordo com dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, foram registrados contra violência à crianças e adolescentes, pelo Disque 100:

228.500

denúncias

2023

289.400

denúncias

2024

26,7%


Crescimento

Maria Clara, desde muito jovem, assumiu a responsabilidade de cuidar e proteger seus irmãos. A mãe tinha como costume apagar cigarros na pele da menina, enquanto explicava como realizar as tarefas domésticas. Já o pai, passava mais tempo no bar do que em casa. Maria deixava seus irmãos no quarto, escondidos embaixo da cama, fazendo o mínimo de barulho possível. Aliás, mesmo o menor ruído podia irritar a mãe a ponto de mandá-los para o porão, com apenas uma única refeição por dia, e só sair de lá quando a casa estivesse suja o suficiente, para precisar que a menina fizesse a faxina novamente.

Mas o porão silencioso ainda era melhor do que estar por perto, quando o pai voltava da jogatina, no qual o menor motivo já era o bastante para fazer com que as brigas e as surras começassem.

Crescer em meio à violência e ao medo gera diferentes consequências para cada vítima. Maria Clara, por exemplo, precisou amadurecer rapidamente para cuidar, ensinar e proteger seus irmãos. João Vitor aprendeu a não se entregar e a manter distância de pessoas novas. Marcella, por sua vez, aprendeu da forma mais difícil, que o silêncio era a opção mais segura.

Um estudo intitulado “O impacto do desenvolvimento na primeira infância sobre a aprendizagem” realizado pelo Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância (2014) diz que a primeira infância é uma fase crucial para o desenvolvimento humano. Traumas vividos nesse período podem ter consequências profundas e duradouras. Seus estudos indicam que crianças expostas a maus-tratos têm maior risco de desenvolver transtornos psicológicos, dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento.

O sistema de proteção à criança e ao adolescente no Brasil existe justamente para intervir nesses cenários, oferecendo uma chance de recomeço. Mas essa intervenção é o suficiente?

Foto fornecida por Cláudia Mencziga.
Marcas de queimaduras de cigarro e escápula quebrada.

Mesmo após serem retiradas, as consequências dos traumas persistem, funcionando como mecanismos de defesa. Como Maria Clara, que ainda se sente a principal responsável pelos irmãos, sendo frequentemente considerada uma “mini adulta” por suas atitudes e responsabilidades. Ou João Vitor, que apesar de ter se tornado um menino carismático e brincalhão, ainda tenta manter uma distância segura de qualquer um que não sejam as suas irmãs. Além de Marcella, que desenvolveu dificuldades de fala, uma consequência direta do trauma vivido e do silêncio que adotou como uma forma de proteção.

Embora a intervenção precoce seja essencial para mitigar esses efeitos e proporcionar um desenvolvimento mais saudável, como menciona a psicóloga Bruna Kibrit, é importante entender que a retirada de uma criança da sua família precisa ser a última opção. Isso porque o caminho até o abrigo é longo e repleto de obstáculos, envolvendo uma complexa rede de assistência social, jurídica e psicológica. Por isso, antes de chegar a esse ponto, há um longo e árduo processo de intervenção, onde diversos profissionais trabalham para tentar reverter a situação de risco dentro do próprio ambiente familiar.

Quando todas as tentativas falham e a segurança da criança está irremediavelmente comprometida, a retirada se torna inevitável. Esse processo envolve assistentes sociais, psicólogos, advogados e juízes, todos empenhados em garantir que a transição seja a mais segura e menos traumática possível.

O que leva uma criança a ser retirada de sua família?
Essa pergunta já passou pela sua cabeça?

Entrevista com a psicóloga Bruna Kibrit - Parte 1

Assim como afirma a assistente social Regiane Pierassi, formada em Serviço Social na PUC-SP e que trabalha diariamente com essas crianças “O acolhimento é o sétimo passo do acompanhamento das crianças”. Antes de chegar às casas de acolhimento, essas crianças passam por um processo complexo e delicado que visa garantir seus direitos e bem-estar, conforme preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Antes de qualquer ação de acolhimento institucional, é essencial identificar a situação dos pequenos por visitas regulares do conselho tutelar, que verifica a situação familiar. A psicóloga social Sheila Roberta explica sobre como funcionam as denúncias: “Há frequentes denúncias de escolas sobre crianças que não frequentam as aulas ou que aparecem machucadas. Também há denúncias de postos de saúde sobre responsáveis que não levam seus filhos para consultas médicas. Quando essas denúncias são feitas, elas são investigadas. A Vara da Infância verifica a situação, visitando a casa das famílias e indo às escolas confirmar as informações.” afirma Sheila que complementa ao dizer que dependendo das necessidades identificadas, a família pode ser encaminhada para serviços de apoio social ou psicológico, como CREAS ou CAPS. No entanto, quando esses esforços não são suficientes e o risco para a criança persiste, a retirada do lar torna-se inevitável.

O tempo de resposta para esse tipo de intervenção varia conforme a complexidade do caso, a gravidade da situação, as informações coletadas durante o processo e os resultados das tentativas de intervenção prévias. Cada caso é único e exige um olhar atento às especificidades envolvidas, especialmente quando há risco iminente à vida da criança.

Caio é um bebê de oito meses, que está acolhido institucionalmente desde os seus dois meses de vida, após ter sido esfaqueado 18 vezes por sua genitora. Desde sua entrada no abrigo, passou por duas cirurgias e necessita de cuidados especiais para alimentação e desenvolvimento. Seu estado de saúde ainda é delicado, e seu crescimento encontra-se bastante comprometido — seu tamanho é comparável ao de um bebê com cerca de metade do seu tempo de vida.

Casos como esse retratam a urgência e a necessidade de respostas eficazes do sistema de proteção à infância, sendo um retrato da realidade que muitos jovens enfrentam diariamente. Apesar dos cuidados recebidos no abrigo e dos esforços das equipes envolvidas, a ruptura com o núcleo familiar costuma deixar cicatrizes profundas. O vínculo afetivo, mesmo em contextos de violência, muitas vezes permanece presente, o que torna o processo de retirada ainda mais complexo e emocionalmente desafiador. A psicóloga Bruna Kibrit explica isso:

Entrevista com a psicóloga Bruna Kibrit - Parte 2

Juan* é um menino boliviano, encontrado pela polícia, vivendo em condições deploráveis. Ele e sua mãe moravam em um local onde a costura era a principal atividade, e seu patrão impunha regras rigorosas que impediam os filhos de circularem pela casa. Para poder trabalhar e garantir algum sustento, ela tomou a decisão desesperada de amarrar Juan aos pés de sua cama. O menino, foi encontrado em uma situação crítica: sujo de fezes e urina, e sendo alimentado apenas uma vez por dia,no horário de intervalo da mãe.

A situação de Juan ilustra a profunda complexidade que pode estar por trás de um caso de negligência. Embora a ação da mãe seja inaceitável, ela também era uma vítima das próprias circunstâncias. Cada história revela a interseção entre vulnerabilidade e necessidade desesperada, destacando que a negligência pode ser o resultado de uma série de fatores estruturais e econômicos.

Uma vez tomada a decisão de retirada, a criança é conduzida a uma casa de acolhimento. Esse momento é especialmente delicado, pois envolve a separação das referências afetivas familiares. Para minimizar o trauma, as autoridades buscam manter irmãos juntos sempre que possível, e providenciam acompanhamento psicossocial contínuo. O objetivo é oferecer um suporte que permita o desenvolvimento dos pequenos em um ambiente estável e acolhedor.

No acolhimento institucional, uma das principais dificuldades enfrentadas é a desconfiança nos relacionamentos.

Jovens que passam por essa experiência frequentemente têm dificuldade em confiar nos adultos e formar vínculos afetivos. Elas também podem mostrar resistência às regras e leis, pois sentem que foram falhados pelo sistema.

Um exemplo é a história de Lucas*, um menino sorridente, brincalhão e extremamente carinhoso, sempre demonstrando uma energia contagiante e um desejo de estar perto dos outros. Lucas é constantemente afetuoso, buscando sempre uma companhia.

No entanto, algo que chama a atenção é a maneira como ele reage quando um voluntário fica um tempo sem aparecer. O menino se mostra hesitante e um pouco reservado, como se tivesse receio de se aproximar.

Essa reação de Lucas traz à tona, como o trauma de ser retirado do convívio familiar pode se manifestar em comportamentos de desconfiança e insegurança. Mesmo estando em um ambiente que recebe carinho e cuidados. A experiência de abandono e a incerteza sobre a permanência dos relacionamentos afetam profundamente sua capacidade de confiar nos adultos. Kibrit explica que “esses sentimentos de abandono e culpa podem levar a problemas emocionais e de comportamento, impactando significativamente a saúde mental das crianças”.

Nessas casas, as crianças recebem cuidados básicos e apoio psicológico. Profissionais capacitados trabalham para criar um ambiente seguro e acolhedor, onde elas possam se sentir protegidas e amparadas. Ao mesmo tempo, esforços contínuos são realizados para buscar a reintegração familiar ou, quando isso não é possível, é necessário encontrar alternativas de acolhimento permanentes, como a adoção.

Na prática, observa-se que muitas vezes são as figuras femininas, como mães, avós e tias, que permanecem como referência. Segundo Bruna, as figuras masculinas, em muitos casos, só aparecem em situações negativas, aumentando o impacto emocional quando não conseguem estar presentes de forma positiva na vida dos pequenos.

A trajetória dessas crianças até as casas de acolhimento é marcada por um processo que, embora doloroso, busca proteger e garantir o desenvolvimento pleno e saudável dos menores.

É um caminho necessário para assegurar que todas elas tenham a chance de crescer em um ambiente seguro e protegido.
(Imagens fornecidas pela Instituição beneficente Grupo Sol).

Cenários invisíveis: a realidade de milhares de crianças afastadas de seus lares.

Maria Clara acordou com o sol entrando pela janela do quarto compartilhado. Ela se levantou da cama e juntou-se aos demais para o café da manhã, a primeira das cinco refeições diárias oferecidas na casa – café da manhã, almoço, lanche da tarde, jantar e ceia. Após o café, a menina volta ao quarto e, junto às outras crianças, prepara-se para a escola.

Após a decisão judicial de ser retirada do núcleo familiar, Maria Clara e os outros foram encaminhadas para esse ambiente temporário, que se tornou seu novo lar. A rotina da casa é cuidadosamente planejada para proporcionar estabilidade e um senso de normalidade aos que vivem lá. Todos seguem um cronograma bem definido, com horários fixos para todas as atividades, incluindo as refeições e os banhos, que geralmente acontecem à noite, quando a temperatura está mais amena.

A habitação também enfatiza a importância de ensinar responsabilidade e autonomia, Maria Clara, apesar da pouca idade, já começa a entender a importância de cuidar de suas próprias coisas e já sabe que toda sexta-feira é dia de cuidar das roupas e dos tênis. Esse ensinamento é dado com foco ainda maior para os adolescentes, que são incentivados a cumprir esses deveres sozinhos. “Ajudar eles a serem mais independentes e responsáveis é uma parte essencial do nosso programa, não só para manter a ordem, mas também para preparar essas jovens para o futuro” diz Cláudia Menczigar, administradora geral do Instituto Dad’s Curumim e mãe adotiva de Vinícius, um dos antigos moradores do Instituto.

Além disso, a estrutura da casa é bem dividida para auxiliar no andamento da rotina. Cláudia explica como a divisão dos quartos funciona por idade e gênero. “Temos um berçário, um quarto para os pequenos, um quarto para os adolescentes e um quarto para as meninas maiores, separados dos meninos”.

Atualmente, o Instituto abriga 15 crianças e conta com uma equipe de 15 funcionários, incluindo assistente social, psicóloga, administradora geral, gerente, coordenadora, cozinheiras e orientadores educacionais. “Temos a Zenaide, que é nossa cozinheira principal, e a Amanda, que cozinha nos finais de semana. Amanda, inclusive, é uma ex-acolhida do Instituto, tem também a funcionária operacional, a dona Maria Luíza, temos oito orientadores de educação e a tia Sueli, que é a enfermeira ”, contou Menczigar.

Além da estrutura essencial e da equipe dedicada que acompanha o dia a dia dessas crianças, as casas de acolhimento também contam com o apoio de ONGs parceiras, como o Grupo Sol. Essas organizações contribuem com doações de alimentos e produtos de higiene, além de promoverem visitas de voluntários, que dedicam seu tempo para brincar e interagir com as crianças, levando uma dose extra de alegria e oferecendo-lhes a oportunidade de vivenciar dias mais leves.

Assim como o Instituto Dad’s Curumim, existem mais de 6.276 unidades de acolhimento no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Cada uma dessas unidades possui uma abordagem única para o cuidado e proteção desses jovens. Algumas delas desenvolvem projetos para documentar a história de vida das crianças que passam pelos abrigos. Muitas vezes, a história dessas crianças pode se perder ou ficar fragmentada, especialmente quando chegam ao abrigo com poucos anos de idade e não têm muitas memórias da família biológica.

Eles, muitas vezes, não têm a oportunidade de ouvir de suas mães sobre suas próprias infâncias, o que dificulta ainda mais a compreensão de suas origens e identidade. Durante o período no abrigo e após a adoção, podem enfrentar desafios para entender e contar sua própria trajetória. Quem vai narrar essa história para elas? Como elas poderão processar tudo o que aconteceu em suas vidas?

Para ajudar nesse processo, é criado um álbum com fotos e registros detalhados. Ele documenta desde a chegada do pequeno ao abrigo, incluindo informações sobre seus pais biológicos e o tempo vivido na instituição. Esse álbum funciona como uma ferramenta importante para preservar memórias, ajudando-os a compreender seu passado, a reconhecer suas preferências e a construir uma identidade mais sólida e completa.

As Casas de Acolhimento Institucional, exemplificadas pelo trabalho do Instituto Dad’s Curumim e muitas outras pelo Brasil, são fundamentais para garantir que crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade tenham um ambiente seguro, acolhedor e repleto de oportunidades para um desenvolvimento saudável e promissor.

“A gente não avalia amor”

Ação beneficiente.
Brincadeiras de dia das crianças na casa de acolhimento.

O acolhimento institucional, apesar de necessário em alguns casos, é sempre visto como uma medida temporária. A busca pela reintegração familiar é constante, com visitas regulares e acompanhamento tanto da criança quanto da família.

O caminho para a reintegração familiar é repleto de desafios e exigências, e envolve uma série de etapas cuidadosamente planejadas para garantir o bem-estar da criança. O principal objetivo é restabelecer a convivência familiar de forma segura e estável, preservando o vínculo afetivo com a família sempre que possível. No entanto, esse processo é complexo e requer um acompanhamento contínuo e especializado.

Todo esse trabalho de preparação requer uma abordagem integrada em rede, onde diferentes serviços e profissionais trabalham juntos para garantir o melhor resultado para os jovens. Primeiro a situação familiar é avaliada minuciosamente. O conselho tutelar, em conjunto com assistentes sociais e psicólogos, realiza visitas regulares para monitorar as condições de vida da família e avaliar se as mudanças necessárias foram implementadas. Essas visitas são fundamentais para verificar se o ambiente agora é seguro e se as necessidades de todos estão sendo atendidas adequadamente.

“Cada caso de reintegração é único e deve ser tratado com muita atenção e sensibilidade. Avaliamos não apenas as condições materiais da família, mas também seu ambiente emocional e social. Mas é importante entender que a gente não avalia amor, não avaliamos o quanto essa mãe ama essa criança”, afirma a psicóloga Bruna Kibrit, e complementa que, para muitas crianças, a reintegração familiar é também uma fonte de esperança e o retorno à família representa a oportunidade de reconstruir laços afetivos e retomar aspectos de sua vida que foram interrompidos. Ela diz que é fundamental que todo o processo seja conduzido com cautela, garantindo que a decisão final seja sempre voltada para o melhor interesse dos pequenos.

“É crucial garantir que a criança retornará a um ambiente onde seus direitos e necessidades serão plenamente respeitados” - Bruna Kibrit.
(Imagens fornecidas pela Instituição beneficente Grupo Sol).

No entanto, a reintegração familiar não é uma solução universal. Em alguns casos, a criança pode se sentir mais segura na instituição de acolhimento e resistir ao retorno ao lar familiar. Lara* é um exemplo desse cenário. Apesar de seus dois irmãos mais velhos terem retornado para a casa da mãe, ela optou por não voltar. Ela se sentiu mais segura no ambiente da instituição, onde a sensação de proteção era mais palpável do que em sua casa anterior.

Esse medo de voltar para a família pode ser tão intenso que, mesmo após a chegada a um ambiente seguro, algumas crianças continuam a viver com a constante apreensão de que possam ser devolvidas aos lares abusivos.

É o que ocorreu com os irmãos Maria Clara, João Vitor e Marcella, mencionados anteriormente. Durante os primeiros meses na instituição, qualquer presença nova fazia com que os dois mais novos chorassem desesperadamente e se escondessem, enquanto Maria Clara implorava para que não fossem levados de volta para a antiga casa.

Em um episódio particular, a psicóloga da instituição tentou tranquilizar a mais velha, garantindo que eles não seriam devolvidos ao lar abusivo. A resposta da menina foi uma pergunta carregada de uma angústia palpável: “Então, agora estamos seguros?”.

Quando a reintegração familiar não é viável, devido a condições que não foram suficientemente melhoradas ou a novos riscos identificados, outras alternativas são exploradas. Isso pode incluir a busca por famílias adotivas que possam oferecer um ambiente estável, mas isso não é tão fácil quanto parece.

Para muitas crianças e adolescentes que chegam às casas de acolhimento, a perspectiva de adoção pode parecer distante, especialmente à medida que envelhecem.

Laços que transformam vidas

Vinicius Santana.
(Imagem fornecida pela Instituição beneficente Grupo Sol).

Vinícius Santana é uma dessas crianças que cresceu em um ambiente de acolhimento e apesar da idade, conseguiu trilhar um caminho incomum. Negro e com deficiência intelectual, ele chegou ao abrigo com apenas oito meses de vida e lá permaneceu até os 18 anos. Desde muito pequeno, Vinícius enfrentou desafios que demandavam cuidados especiais. Sua deficiência faz com que ele precise de medicação contínua e, em momentos de crise, precisa de apoio intensivo.

Cláudia Menczigar conheceu o menino quando ele estava prestes a entrar na maioridade. “O Vinícius, quando eu o conheci, estava prestes a completar 18 anos e precisávamos encontrar um lugar onde ele pudesse ficar, devido à sua deficiência,” relembra Cláudia. Uma vaga surgiu na Casa André Luiz, uma instituição especializada, e ela se encarregou de organizar a transferência.

A visita à Casa André Luiz, no entanto, foi um momento decisivo. Acompanhada de seu marido e da coordenadora Márcia, Menczigar foi realizar a entrevista com a assistente social e o psicólogo da instituição. No final da entrevista, quando estavam prestes a ir embora, Vinícius começou a chorar, mostrando claramente que não queria ficar ali. “Ele não fala, mas gesticula para se comunicar. Nesse momento, decidi que iria cuidar dele,” relata a mãe.

A decisão de Cláudia foi cercada de desafios. Ela já havia considerado levar Vinícius para sua casa anteriormente, mas sabia da responsabilidade envolvida em cuidar de um jovem com deficiência intelectual, que exige atenção constante, medicação e suporte durante suas crises. “Queria adotá-lo, mas foi complicado no começo. Ele precisa de muitos cuidados e, às vezes, passa por crises que são difíceis de gerenciar sozinha”, compartilha Cláudia. Ainda assim, o carinho e o vínculo que ela desenvolveu com Vinícius falaram mais alto e, naquele dia, ela decidiu que ele faria parte de sua família.

Hoje, Vinícius tem um quarto só dele na casa de Cláudia, onde é tratado com o cuidado e a dedicação que uma família deve oferecer. No entanto, apesar do novo lar, Vinícius ainda sente um forte apego pelo abrigo onde cresceu e frequentemente pede para passar um tempo lá. “Apesar de ele considerar minha casa como um refúgio e me ver como mãe, o abrigo, onde ele viveu desde bebê, é o que ele realmente considera como lar”, explica Cláudia e complementa ao dizer: “É lá que ele passou a maior parte de sua vida, construindo laços com as outras crianças e com os cuidadores que entendem sua condição como ninguém”.

Foto 1

“A gente tem um aprendizado enorme com as crianças” - Marcus Racuia.
(Imagem fornecida pela Instituição beneficente Grupo Sol).

Ciclos: repetições e encerramentos

Nem todas as crianças têm a mesma sorte de Vinícius. Muitas, acabam por ir para as repúblicas jovens, e ao saírem de lá, enfrentam dificuldades e acabam voltando para o ambiente abusivo de onde foram retiradas. Esse ciclo de violência e negligência, infelizmente, se repete em muitos casos, com jovens que, ao engravidarem, têm seus filhos retirados e acreditam que, assim como eles, essas crianças também terão a sorte de serem bem cuidadas em uma casa de acolhimento. No entanto, essa percepção ignora as complexidades do processo e os desafios que essas crianças enfrentam.

Eduardo, vice-presidente da ONG Grupo Sol, explica que a realidade é ainda mais cruel do que parece. “A legislação não permite que nenhuma criança fique abrigada algo completar 18 anos. Essas crianças muitas vezes não têm para onde ir”, afirma ele, relatando sua experiência de dois anos e meio trabalhando em um abrigo em Atibaia, chamado “Mariquinha do Amaral”, onde tinham um trabalho de ajudar os jovens a partir dos 16 anos, que moravam no local, a conseguir o primeiro emprego, e uma parte do salário era guardada como poupança para o momento em que eles tivessem que deixar o abrigo. “Porém, poucas conseguiram se manter no emprego e seguir a vida de forma estável. A maioria acabou voltando para as antigas casas, engravidaram, e muitos desses filhos acabaram indo para os abrigos.”

A desconexão entre o acolhimento temporário e a realidade fora dos abrigos é alarmante. Para os jovens, os abrigos oferecem uma sensação de alívio temporário, mas não de solução definitiva. “Elas mesmas diziam que o abrigo era como férias, pois tinham cama, comida, internet, e várias atividades. Mas, quando saíam, não tinham para onde ir e acabavam voltando às mesmas situações ruins”, comenta Eduardo.

Mas nem todo ciclo acaba por se repetir.

O processo de adoção, apesar de ser uma solução, está longe de ser simples, é um caminho longo e burocrático, com uma fila extensa de espera. No entanto, apesar de todos os desafios, a adoção é possível e, para algumas crianças, transforma vidas de maneira definitiva. Maria Clara, João Vítor e Marcella são exemplos disso. Um casal, tocado pela história dos três, os conheceu por vídeo e logo se afeiçoou. Maria Clara, sempre protetora, assumiu o controle da conversa, deixando claro que ela e os irmãos não se separariam. João Vítor, tímido, se comunicava através da irmã mais velha, enquanto Marcella, silenciosa, se mantinha próxima, observando com desconfiança. Aos poucos, no entanto, os três se sentiram à vontade com a ideia de ter uma nova família. Mesmo antes da adoção ser formalizada, os irmãos já chamavam o casal de “pai” e “mãe”. A cada dia, ficava mais evidente que o desejo de começar uma vida nova. Esse momento trouxe uma reflexão importante sobre o impacto do trauma infantil e a necessidade de suporte emocional durante esse processo.

Agora, Maria Clara, João Vítor e Marcella iniciam um novo capítulo de suas vidas com o processo de adoção finalmente concluído. No dia 31 de outubro, seguiram para uma cidade no interior ao lado de sua nova família, deixando para trás uma trajetória repleta de desafios e o que antes era marcado pela dor agora dá lugar a uma história de reconstrução, onde, finalmente, podem encontrar a segurança e o acolhimento que muito buscaram.

*Os nomes e idades, assim como as histórias das crianças sofreram alterações para preservar sua identidade e segurança.

“Mudar vidas também muda a sua vida” - Marcus Racuia.
(Foto tirada em visita no dia 30/10).

O website “Laços de sobrevivencia” é um trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, produzido por Beatriz Figueiredo.

Orientação: Profa. Dra. Denise Paiero.
Coordenação: Prof. Dr. Hugo de Almeida Harris.

Esse TCC não reflete a opinião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Seu conteúdo e abordagem são de minha responsabilidade.